22 de ago. de 2006

52 Bruxaria










Suposta magia

A crença em feiticeiras mobilizou embates intelectuais ao longo dos séculos; milhares foram acusadas e executadas por cultuar o demônio.

A transição do período medieval para a modernidade foi marcada pela confusão de idéias e de crenças. Uma Pseudo­doxia epidêmica, para usar o título da obra de sir Thomas Browne, publicada em 1646, denunciava a epidemia de falsos conhecimentos. Era um período em que, como disse Gramsci, "0 novo ainda não nasceu mas o velho ainda não morreu"; a astronomia convivia com a astrologia, a química com a alquimia, a ciência com a magia e a superstição. É nessa época que a caça às bruxas na Europa atinge proporções impressionantes. Estima-se em 200 mil os processos contra acusados de bruxaria no período; 60 mil deles terminaram em execuções.

O que caracterizava a bruxaria era, em primeiro lugar, a prática do maleficium (feitiço) e, em segundo, a associação com o diabo com conotação sexual: os sabás terminavam em orgias homo ou heterossexuais, com a participação dos demônios. A crença em feiticeiras era comum não só entre os pobres ignorantes, como também entre ricos e pessoas supostamente instruídas, filósofos, juízes, religiosos. Já em 1326, uma bula do papa João XXII equiparava a bruxaria à heresia. Vários livros surgiram então sobre o tema. Um deles tomou­se o grande manual de investigação da
bruxaria: o Malleus maleficarum (Martelo das bruxas), escrito pelos inquisidores dominicanos Heinrich Kramer e Jakob Sprenger. A obra logo se revelou um best-seller: de 1486, ano de sua publicação, até 1669 foram feitas 34 edições da obra.

Nem todos os intelectuais da época, porém, concordavam com essa perseguição. Em De praestigiis daemonum (Queda das almas), de 1563, o médico e filósofo Johann Weyer sustenta que as bruxas, muitas delas mulheres idosas, eram na realidade pessoas doentes e sujeitas a alucinações. A opinião era partilhada por Reginald Scot, juiz de paz em um condado inglês, para quem as bruxas eram pobres mulheres melancólicas, que refletiam em sua conduta a perturbação da época.

A essa ponderação razoável, Weyer, luterano extremado, acrescentava um elemento religioso. A melancolia tomava as pretensas bruxas fáceis vítimas do diabo, que nelas se introduzia pela bile negra, o humor responsável pela condição, à qual se somava a ação de preparados alucinógenos. Dizia-se que cabos roliços de madeira eram untados com tais ungüentos e aplicados por via vaginal - daí a imagem da bruxa voadora, cavalgando uma vassoura.

No fundo, Weyer usava a questão da bruxaria para polemizar com os católicos e com a Inquisição. Sua generosidade tinha limites: defendia as bruxas, mas queria que os magos, em sua opinião capazes de mobilizar demônios, fossem castigados. Em De Ia démonomanie des sorciers (Da demonomania dos feiticeiros), de 1580, Jean Bodin tratou de refutar as objeções de Weyer. Jurista famoso, professor da Universidade de Toulouse, Bodin é considerado o pai da ciência política. Em matéria de feiticeiras, contudo, partilhava as crendices da época. Respondendo a Weyer, argumentava que as bruxas não podiam ser melancólicas, pois a melancolia é coisa de homem. Na qualidade de médico, Weyer deveria saber que o organismo da mulher não pode produzir a bile negra. Melancolia exige secura, e as mulheres são naturalmente úmidas.

De outra parte, pensadores de peso, como Erasmo e Mon­taigne, eram céticos em relação à bruxaria, e Thomas Hobbes 1
sustentava que tanto a loucura como a feitiçaria resultavam de
falhas na "máquina do corpo", então descrita por Descartes.
A controvérsia haveria de se prolongar, e a perseguição às supostas adoradoras do demônio chegaria ao Novo Mundo: em Salem, Nova Inglaterra, Estados Unidos, um famoso processo condenou muitas mulheres à morte. A caça às bruxas é um triste exemplo de que, mesmo em épocas de progresso, as crendices podem mobilizar pessoas. Não por acaso o movimento anti­comunista na época do senador americano Joseph MacCarthy ficou conhecido por essa expressão. As bruxas já não cavalgavam vassouras - mas a fúria paranóica era a mesma.

MOACYR SCLIAR é médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras.

Mídia: Revista Mente & Cérebro - Julho 2006
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