Amizades
Fonte:
Folha Equilíbrio
SP/12fev2004
Página 6 a 8
Amizades, paixões, ternura: temas que, à primeira vista, parecem ser de interesse apenas da vida privada, assunto particular, já atraem pesquisadores de várias ciências, das humanas às médicas.
No Brasil, o Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia da Emoção (Grem), especialização ainda pouco conhecida, estuda os mecanismos que sustentam fenômenos considerados subjetivos como as amizades e o modo como estas moldam a sociedade e são moldadas por ela.
"Ao ser amigo, eu deixo de ser singular, tenho regras, mesmo que implícitas, de conduta, de comportamento, de afeto. Amizades fazem com que as pessoas consigam administrar um tipo de vida, ter projetos como indivíduo, atuar e cumprir seu destino na sociedade", diz o antropólogo Mauio Koury, professor da Universidade Federal da Paraíba e coordenador do Grem.
Amizade aqui é entendida como a duradoura, a sólida, ressalva que sé faz ainda mais necessária por causa da banalização da palavra - o brasileiro chama de amigo o garçom, o flanelinha e até o desconhecido a quem pede uma informação na rua. Mas as amizades longas são as que contam.
"Amizade que acaba é porque nUnca começou. Se não for algo que sai do pragmático, do imediato, não é verdadeiro", diz o filósofo e colunista da Folha: Mario Sergio Cortella.
Esse "ciclo longo" de relacionamento, segundo denomina o antropólogo José Guilherme Magnani, do Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo, não tem como base o trabalho ou lealdades específicas. A disponibilidade de trocas a longo prazo é o que sustenta as parcerias no decorrer do tempo, diz o antropólogo.
O que faz surgir aquela amizade "para sempre" está além das explicações da razão.
"Não é optativo. Todos tropeçam em pessoas com quem teriam esse tipo de relacionamento, mas podem reconhecê-Ias ou não naquele momento", diz o psicanalista Armando Colognese Jr., supervisor do curso de formação em psicanálise do Instituto Sedes Sapientae,
de São Paulo.
Embora não se conheça por completo a química da amizade, Colognese acredita que ela não acontece, pelo menos na forma duradoura e produtiva, com pessoas muito iguais entre si.
"A amizade requer aquele raro ponto médio entre semelhança e diferença",
escreveu o filósofo norte-americano Ralph Waldo Emerson (1803-1882).
Outra característica que diferencia as amizades de longa data é a possibilidade de confronto sem ruptura. "Se você me importa, eu me incomodo com você. Incomoda-me se você está certo, errado, o que você fala e até a forma de você se vestir", diz Cortella.
Amigo é quem pode falar aquilo que não gostamos de ouvir. O administrador de bufê Walter Pires Jr., 46, viveu essa situação com a fonoaudióÍoga Gláucia Domingues, 45, sua amiga há mais de 30 anos. Pires conta que, certa vez, disse à Gláucia que discordava do caminho que ela estava tomando no campo sentimental. A resistência da fonoaudióloga a ouvir os consehos do amigo o levou a encerrar o assunto, mas não sem antes avisar: "Tudo bem, mas não peça mais a minha ajuda". Pires acredita que essa frase tenha: feito "cair a ficha" e, passado o tempo regulamentar de cicatrização de mágoas; a amizade voltou a ser o que era.
A possibilidade de superar mágoas também é pressuposto e resultado de amizades duradouras, diz Colognese.
Requer maturidade, é óbvio, e também uma das maiores virtudes do ser humano, segundo o psicanalista, que é a capacidade de reconhecer os próprios limites e saber onde procurar o que falta - e a amizade é um espaço privilegiado para essa busca.
As amizades iongas são mais raras porque, mesmo que surgidas num golpe do acaso, dão muito mais trabalho. "Amigo pede dinheiro emprestado, bebe, dá um trabalhão, mas você sabe que um dia estará carregando a alça do caixão dele e chorando sua partida sem saber bem o motivo", diz Cortella. É um esforço mais de compreensão e aceitação do diferente do que de convivência física. "Nem é preciso encontrar-se sistematicamente, há um pressuposto de que a amizade exista", diz o antropólogo Mangnani. Na amizade sólida, o tempo é uma contingência. Não afasta, apenas adia.
Ao lado da afinidade e do respeito, a criação de certos rituais reaviva o pacto de confiança ou lealdade que, para Koury, é elemento fundamental da amizade longa. Ele diz que, em certas sociedades, como as indígenas, os rituais são muito precisos, com regras predeterminadas. Na sociedade ocidental, os rituais são criados um pouco aleatoriamente.
Para Rosa Ramos, 60, e MaJa Lúcia Buso, 47, o ritual é o treino de vôlei, praticado religiosamente três vezes por semana .na ACM (Ass. Cristã de Moços) da Lapa, em São Paulo. A afinidade no esporte criou uma sólida amizade além das quadras e deu vitórias afetivas e emocionais à dupla. "Por causa das amigas do vôlei, nem preciso fazer terapia", diz Mara.
Pesquisas médicas indicam que amizades são mesmo fundamentais para a saúde mental e física.
Gerald Ellison, diretor do serviço de psiconeuroimunologia do Centro de 'Uatamento de Câncer da América, em Tulsa, Ok1ahoma (EUA), diz que "sem amizades experimentamos isolamento, solidão, sentimentos associados a doenças. Amigos podem aumentar nossa esperança. E maior esperança está associada a melhor desempenho do sistema imunológico". Foi o que vivenciou a advogada Teresa Casadeval, 45.
Em 1978, ela teve um linfoma bastante sério, tratado por Drauzio Varella. Curou-se completamente e acha que sobreviveu não só pelo tratamento mas também pelo apoio que recebeu das amigas de infância, que mantém até hoje.
Não é novidade que o apoio emocional de amigos ajuda a lidar com situações de estresse. Agora, uma pesquisa da Universidade da Cálifórma (EUA) sugere que, nas mulheres, as substâncias produzidas pelo cérebro em resposta ao estresse levam-nas a procurar suas amigas. Aparentemente, quando é liberado um hormônio chamado oxitocina, os impulsos de lutar ou de fugir, associados ao estresse, são substituídos por uma tendência para unir-se aos amigos e dar carinho, explica Laura Cousin K1ein, professora de saúde biocomportamental na Universidade Estadual da Pensilvânia (EUA). Quanto mais a convivência é realizada, mais oxitocina é liberada, o que produz um efeito calmante e reduz o estresse.
Amizades sólidas também propiciam uma velhice melhor. "Principalmente se você tem o privilégio de conviver com jovens com quem criou vínculos de afeto sem que eles sejam de sua família", diz o advogado e ex-ministro da Justiça José Gregori, 73. Gregori tem um grupo de jovens amigos e acha que a amizade de.velho com jovem é geralmente plural. "Mais ou menos a idéia de Sócrates e seu grupo, mas pensando como discípulos do meu afeto", diz.
Um desses amigos, o advogado Gustavo Hungaro, 29, conta que admirava Gregori desde que cursava a faculdade de direito, mas ele era um referencial ainda distante. Quando começaram a trabalhar juntos na Secretaria de Direitos Humanos, o contato profissional gerou um apreço recíproco e uma amizade que independe dos laços profissionais, mas mantém afinidades comuns à trajetória dos dois: "Estamos nos reunindo para organizar mesas redondas sobre as causas da violência. As grandes amizades também propiciam nossa ação no espaço coletivo", diz Hungaro, numa espécie de comprovação das idéias da antropologia da emoção discutidas por Mauro Koury.
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