3 de ago. de 2006

50 O Valor de uma Amizade











O VALOR DE UMA AMIZADE

Passava das 21 horas quando a campainha soou.
Estevão, que já estava em trajes mais leves, foi até o postigo da porta para verificar quem era. Como de hábito, colocou a mão como se fosse uma viseira para melhor poder enxergar, e notou se tratar de Jane, a vizinha.
Abriu a porta e convidou-a a entrar.
O que quereria ela àquela hora da noite, numa Quinta-feira de outono ?
-Vim lhe pedir um especial favor – disse ela com sorriso encantador.
- Pois não, se estiver ao meu alcance – respondeu Estevão, curioso, pois achava que não tinha muita intimidade.
- É que neste sábado irei visitar minha avó junto com minha mãe e queria deixar meu “Canário da Terra” com alguém de minha confiança.Pois é, você foi o escolhido - sorrindo de novo.
Estevão ficou ali parado em frente como uma estátua,olhando aquela linda mulher que tinha um ar maroto.
- E então? O que você me diz? Eu o deixo com a gaiola, o alpiste necessário, o almeirão... mas a água é por sua conta – arrematou ela sorrindo, antes que Estevão saísse daquela posição de transe.
-Sim, é claro. Claro que fico com o Canário, mas o Mário seu irmão não vai se opor? Quem sabe se ele preferisse ser o guardião, afinal...- foi o que Estevão conseguiu falar.
- Não. Definitivamente não. Meu pobre passarinho ficaria sem sorte e ao desamparo. Ele gosta é de bola, e imagine se vai se preocupar com “o bichinho emplumado” - assim falava ela, com convicção.
- Não quer sentar-se um pouco e tomar um cafezinho que minha mãe acabou de passar? – convidou ele. E antes da resposta, D. Amélia surgia com uma bandeja e serviu aos dois a aromática bebida tão apreciada em momentos de prazer.

Depois de algum tempo de conversas variadas a três, Jane se retirou certa de que encontrara solução para a custódia do canarinho, prometendo a Estevão que voltaria no dia seguinte com a gaiola e seu ocupante.
Naquela noite Estevão não dormiu direito, e não sabia se por causa do encargo que arranjara sem querer, ou por causa daquela estonteante presença feminina horas antes, que não lhe saia da mente.

No dia seguinte Jane veio pela tarde, com a gaiola ocupada por um lindo Canário da Terra, um pacotinho de alpiste, um pouco de almeirão; e brincando, lembrou à D.Amélia que a água consumida seria por conta de Estevão – que não havia ainda chegado, preso no trânsito com o seu carro...

Quando Estevão chegou em casa, ao adentrar a sala deu de cara com a gaiola e o pequeno pássaro que já estava empoleirado dormindo. Ainda segurando o trinco da porta, ficou parado olhando para o hóspede e sorriu para D.Amélia que o observava para ver sua reação.

Jane foi viajar conforme havia dito, mas para Estevão aquele fim de semana foi diferente dos demais. Pela manhã cuidou do passarinho da amiga pessoalmente e falava com ele baixinho, por certo sobre coisas que talvez gostaria de falar à sua proprietária.

À tarde, tomou um livro cuja leitura já estava pela metade, sentou-se na varanda para lê-lo, mas começou a não prestar muita atenção no que lia e assim logo desistiu, preferindo no silêncio ouvir o canto daquele ser amarelo-rajado ocupante da gaiola que pendurara num lugar fresco e agradável do cômodo onde estava. O canto era bonito mas havia nele uma certa tristeza por causa daquela prisão, concluía os pensamentos de Estevão; mesmo que a gaiola fosse de puro ouro, era uma prisão, sim senhor.

Quando na tarde de domingo Jane retornou, para apanhar o seu pequeno mascote, Estevão fez a ela uma proposta que lhe parecia decente: Soltar aquela pequena ave, que ele nem sabia se macho ou fêmea, da gaiola. Jane foi tomada de surpresa com a sugestão do amigo, pois nunca havia pensado nisso. Tentou ela argumentar que o passarinho já era prisioneiro a mais de um ano e que talvez tivesse dificuldade de sobrevivência na liberdade e que também fora caçado pelo outro seu irmão e que temia parecer-lhe uma desfeita a soltura proposta, pois fora o mesmo que lhe presenteara.Mas nada convenceu Estevão que ficou na defesa da liberdade do passarinho.

Um pouco arrependida no seu íntimo de ter pedido aquele favor ao amigo, retirou-se agradecendo e se desculpando pelo incômodo, aliás contestado por D.Amélia e Estevão.
Havia um aperto em seu coração...

Chegando em casa, pendurou a gaiola no lugar de costume e ficou olhando para o passarinho que vez por outra dava um piado como que saudoso de sua cativante proprietária.

Jane foi para mais perto da gaiola, conversou um pouco com ele e foi se preparar para a segunda-feira, antes de deitar-se. No seu íntimo remoia um sentimento desconfortável, um dilema... Perguntou a si mesma, se por acaso não teria a mesma opinião de Estevão sobre a prisão do passarinho, sentimento dormente mas agora despertado por alguém que a defendia com tanta convicção. Pegou o telefone e quis discutir o assunto mais a fundo com Estevão, do que se arrependeu, porque não tinha tido a prudência de deixar o assunto dormir pelo menos uma noite. Concluiu que devia aquietar-se para depois voltar ao problema.Depositou o telefone no gancho e foi deitar-se.

No dia seguinte no trabalho, comentou o ocorrido com uma colega que era sua amiga, mas o retorno não foi o esperado, e assim voltou ao ponto inicial das suas dúvidas.
Na quarta-feira quando voltava do trabalho, cruzou com Estevão na esquina da rua onde ambos moravam. Ele parou o carro e ofereceu carona, embora estivessem perto das respectivas casas.O convite foi aceito por ela e ficaram conversando um pouco, antes de se separarem. Ele percebeu que ela estava um tanto sem graça, mas bonita como sempre, e então Estevão perguntou se tudo estava bem. Em resposta ela foi franca e direta como era seu estilo, e disse a ele , o que ficara atravessado, naquele episódio do passarinho prisioneiro, polidamente, é claro. Estevão sorriu e pediu desculpas pela falta de cuidado com os sentimentos dela. Acabara o assunto por ser motivo de riso para os dois e cada qual foi para a sua casa. Mas na verdade o problema não a abandonou...

Naquela noite Jane teve sonhos com prisões, perseguições e teve medo; por isso no dia seguinte ligou para o trabalho de Estevão e disse que queria conversar com ele.
Estevão por sua vez, gostou da chamada, mas ficou apreensivo com o tom de voz de Jane.

Saíram conforme combinaram; foram a um barzinho, e Jane informou então a Estevão que decidira soltar o canarinho, explicando-lhe que havia refletido bastante e concluiu que ele tinha razão sobre a liberdade que tanto defendia – mas sobre os pesadelos da noite anterior, nada falou. Por fim Jane convidou a Estevão para ir à sua casa no próximo sábado à tarde para juntos abrirem a portinhola da liberdade. Combinados foram-se do bar.
No sábado, por volta das quatro da tarde, Estevão tomou direção da casa de Jane. Levou flores e chegou com pontualidade.

Após conversarem um pouco, combinaram que a portinhola da gaiola ficaria aberta, e que eles não iriam espantar o pequeno canário para que saísse para o seu vôo de liberdade , pois seria uma escolha dele...Assim, prenderam a portinhola por fora com um pequeno barbante, e se afastaram de perto da gaiola permanecendo em silêncio aguardando o que iria acontecer.Um sorriso, uma piscada, mas nada de palavras entre os libertadores.

O canarinho cantou, olhou à maneira dos pássaros e voou até a portinhola aberta e ficou ali pousado como se examinando a situação surpreendentemente nova para ele . Por fim , voou pela sala, pousou aqui e ali e saiu pela janela aberta, rumo ao jardim da casa. Estevão limpou a garganta e Jane enxugou duas lágrimas que lhe rolaram por aquele rosto moreno e bonito. Passada a emoção mais forte, bateram palmas e riram a ponto de chamar a atenção da mãe de Jane que veio saber o motivo daquela exaltação. D.Julieta que nada sabia ainda dos planos dos dois que estavam naquela alegria, ao saber o motivo achou que ela não devia ter soltado o coitadinho. Jane então abraçou a mãe e disse que estava contente com tudo aquilo.
- O passarinho era seu mesmo – resmungou a mãe.

Tomando um cafezinho recém coado por D.Julieta, pensavam que o pássaro voltaria logo em seguida; esperaram em vão, porque isso não aconteceu.
Duas horas após terem conversado bastante os três, Estevão se retirou porque Jane tinha um compromisso com uma amiga, logo mais tarde. Ele dormiu satisfeito porque o episódio havia tido um final feliz, tinha certeza. Ela dormiu sem mais preocupações, mesmo porque o tal compromisso havia tomado lugar na sua mente...

Na manhã seguinte, domingo, Jane levantou-se e antes de desjejum foi olhar o jardim e surpreendeu se quando ia mecanicamente se dirigindo para ver o seu amiguinho canário, pois ele não estava mais lá. Olhou no jardim a quantidade de passarinhos que havia, mas não tinha nenhum Canário da Terra, pois o seu alforriado havia mesmo partido, concluiu com um sentimento contraditório.

De repente Jane ouviu asas batendo à sua volta e sentiu o seu ex-prisioneiro bem próximo ao seu bonito ombro. Ela acompanhou o seu vôo e viu que ele foi pousar bem na portinhola ainda aberta desde o dia anterior. O canário cantou como se fosse para ela, deu uma revoada pela sala e saiu pela porta aberta, ganhou altura e nunca mais foi visto.

Jane seria capaz de jurar que o canarinho queria dizer-lhe que não morreu por haver passado a noite fora da gaiola protetora, e que havia voltado para se despedir agradecido pela liberdade alcançada daquele coração generoso, despertada pela palavra de um AMIGO.

Conto de
Diniz Aleixo de Moraes
São Paulo-SP
Janeiro/2001
Amizade.
A gloria da amizade não é a mão estendida.
Nem tampouco o sorriso carinhoso, nem mesmo a delícia da companhia.
É a inspiração espiritual que vem, quando descobres que, alguém acredita e confia em você.
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